terça-feira, 6 de setembro de 2011

Conto - O Vento Sopra - Terceira Parte

O café ficou pronto muito antes do sol mostrar a cara. Lá pelas cinco da madrugada Maria da Conceição se pôs de pé, vencendo as dores das varizes que descem pelas duas pernas. As saliências formam mapas. Parecem rios e seus afluentes. Mancham a pele e obrigam a mulher a usar, mesmo no calor, calças compridas sobre meias de compreensão para aliviar a ardência.

Ontem Maria da Conceição saiu pouco antes das sete da manhã de casa. Pegou um ônibus lotado e viajou o percurso de mais ou menos sete quilômetros pendurada no cano instalado no teto do veículo, substituindo os pingentes. De pouca estatura, ela é obrigada a se esticar, para não ser traída pelas curvas acentuadas e freadas bruscas. As pernas, doloridas, apresentaram no fim do dia mais inchaço por causa do contorcionismo que todo o passageiro que viaja de pé num ônibus urbano é obrigado a praticar. E o percurso, que poderia ser vencido em meia hora, durou muito mais do que isso.

Maria da Conceição chegou ao comitê do candidato para o qual trabalha vinte minutos antes do horário de início da sua jornada. Foi o tempo necessário para ir ao banheiro ajeitar os cabelos e passar água fria no rosto. Depois retirou com o coordenador da equipe de rua o seu material de trabalho: a bandeira com o mastro de PVC e um bom punhado de “santinhos”.

Dali foi levada em uma perua Kombi para a área comercial de um bairro distante, junto com mais oito companheiras. Maria da Conceição ocupou a sua esquina, onde agitou a bandeira e distribuiu panfletos. O local, com pouco movimento de pessoas e de carros, permitiria um descanso, até uma sentadinha num banco próximo. Mas ela não quis se arriscar a ter que assinar uma advertência.

O almoço do dia foi pago pelo comitê da campanha: marmitex com arroz, feijão, carne de panela e salada. Nada mais justo, pois as trabalhadoras não teriam onde comprar por conta uma refeição barata e descente naquela localidade. Uma praça de gramas altas e árvores maltratadas foi o refeitório.

Comida pronta é de tempero suave. Há quem goste de sal, outros preferem o sabor mais suave. Maria da Conceição não se dava mais ao luxo de ter escolha. Bastava o arroz, o feijão, a saladinha, a carne com muitos nervos e excesso de gordura. Comia-se o que era possível. Com ou sem sal. De tempero adequado ou sem nenhum cuidado no preparo.

Mas ontem Maria da Conceição se limitou a apenas três garfadas. A comida não desceu por causa de um nó que fechou a garganta e encerrou a fome. Um nó de tristeza, de vontade de ter um emprego que ela tinha consciência, merecia. Para fazer o que sabia: lavar e bem, passar e da melhor forma, higienizar, limpar, caprichar e, enfim, viver com a certeza de que pode, com tarefas que parecem ter pouca importância, tornar o sujo em limpo, o ofuscado em transparente, a noite em dia, os dias em outros dias e a vida em uma possibilidade agradável de viver.

Por Walter Ogama

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