(texto produzido em publicado em 2009)
A vida se abriu feito um leque para Dona Rosa, 64 anos, uma moradora do Conjunto Habitacional São Lourenço, bairro da Zona Sul de Londrina. Ela não ganhou um prêmio milionário de loteria e também não foi contemplada com uma aposentadoria extraordinária. Dona Rosa, mãe de quatro filhos e avó de quatro crianças, ingressou há cerca de um ano e meio num grupo de mulheres da região que busca soluções de melhorias para o cotidiano das famílias do lugar.
A espera pela oportunidade de uma vida comunitária durou mais de seis décadas. Cabelos grisalhos na altura dos ombros, Dona Rosa distribui sorrisos e simpatia quando conta que antes de deixar o seu último emprego de doméstica nada podia fazer além das tarefas de casa nos horários de folga. Ela deixou de trabalhar há dois anos, depois de uma rotina de labuta diária iniciada quando criança, em uma propriedade rural de Apucarana, município do Norte do Paraná.
Nem a mudança para a cidade e tampouco o casamento a liberaram do trabalho. Sem qualificação, Dona Rosa ocupou-se de ser empregada doméstica. Limpava a casa de outras famílias de segunda-feira até sábado, numa jornada que se iniciava às 7 horas, no ponto de ônibus do bairro pobre e sem asfalto onde mora até hoje, até um dos conglomerados mais nobres da região central de Londrina, o Jardim Quebec. O retorno para casa se dava por volta das 19 horas. Só então ela se entregava às emergências de sua moradia simples, muito diferente dos sobrados da localidade onde passava o dia.
Na tarde de uma quarta-feira, Dona Rosa cumpriu um compromisso diferente da rotina de dois anos atrás. Ela passou o período em companhia de outras mulheres da região na Biblioteca Virtual do Jardim Franciscato, bairro vizinho ao São Lourenço. Integrante de um curso de bordados, Dona Rosa usou sua habilidade com as agulhas e as linhas e somou tudo com a criatividade que aprendeu a colocar em prática desde que trocou as paredes de sua casa pelo prédio de um centro comunitário.
Bordou toalhas e exibiu, com indisfarçável orgulho, uma blusa de lã que custou no varejo cerca de R$ 40, mas com as flores confecciondas e aplicadas por ela pode ser revendida por até R$ 80. Dona Rosa já tem encomendas que devem garantir um substituto para o salário de doméstica, pois a aposentadoria não veio, por culpa de anos trabalhados nas casas alheias sem o registro na carteira do trabalhador.
Engana-se, porém, quem imagina que as cerca de 20 mulheres que repartem o espaço com Dona Rosa apenas bordam ou tricotam toalhas e peças do vestuário. O projeto comunitário tem um objetivo muito claro. Ensinar e estimular habilidades manuais é apenas uma parte. Mantida pela Associação das Mulheres Batalhadoras do Jardim Franciscato, a atividade é uma forma de proporcionar às participantes uma alternativa para melhorar a renda familiar e, ao mesmo tempo, conscientizá-las sobre as questões em torno de suas comunidades.
Há cerca de dois meses, a entidade incentivou a comunidade a acordar cedo. Num entroncamento próximo ao terminal de transporte coletivo da região um piquete foi formado pelos moradores, em protesto à alteração do trajeto de uma linha de ônibus. Horas depois a empresa concessionária retornou ao percurso anterior. Num sábado a Biblioteca Virtual sediou uma “Tarde de auto-estima”, nome dado ao evento que reuniu mulheres que sofrem violência doméstica.
Questões coletivas, como asfalto, trânsito, energia elétrica, água, esgoto, saúde, escola e segurança, costumam ser solucionadas pelo poder público só depois das pressões feitas pelas mulheres batalhadoras do Franciscato. Dona Rosa, enquanto borda suas blusas, mantém com as companheiras do grupo diálogos que nem de longe incluem os capítulos das novelas. Os temas são os assuntos que preocupam a comunidade.
Essa dedicação pelo coletivo começou de uma maneira extrema e constrangedora em 1982. Personagem de um trama de discriminação e preconceito, uma outra mulher participante do grupo, a mineira Rosalina Batista, hoje com 62 anos de idade, era uma das moradoras do Jardim Franciscato, na época um loteamento sem a infraestrutura necessária e estigmatizada pela onda de violência. Habitada em sua maioria por pessoas que vieram da zona rural, como era o caso da família de Rosalina Batista, o loteamento, localizado na periferia de Londrina, era também moradia de pessoas envolvidas com o tráfico de drogas.
Magra, de baixa estatura e olhar firme, atrás dos aros redondos dos óculos, Rosalina havia enfrentado o inferno com seus pais e irmãos no Vale do Jequitinhonha, em Minas, trabalhando como meeiro em uma propriedade rural. A vinda para Londrina ocorreu pouco antes da revolução de 31 de março de 1964, que resultou no regime militar. Meses depois, o pai de Rosalina, Pedro Teixeira da Cruz, foi presos e detido por 55 dias por ter participado de uma reunião de trabalhadores rurais, cujo objetivo era de pedir aos patrões melhores condições de trabalho.
Os primeiros anos no Norte do Paraná foram também de sofrimento. Moradores de um sítio no então Distrito de Tamarana, hoje município vizinho de Londrina, a família foi vítima de exploração da mão de obra trabalhando nas lavouras de café. De Tamarana foram para outras propriedades rurais e numa delas, conforme lembra Rosalina Batista, os patrões permitiam que os empregados se reunissem num galpão, à noite, para assistir novela da televisão.
Nessa propriedade a família conseguiu ajuntar economias. Já casada, Rosalina Batista pegou a sua parte e comprou um lote no Franciscato, pois na área urbana de Londrina teria melhores condições para o estudo dos filhos. Nos primeiros tempos trabalhou como bóia fria, na roça. Depois se empregou como diarista.
Num dia de sol forte do verão londrinense, Rosalina chegou ao trabalho e foi demitida. A patroa justificou que não era conveniente manter como empregada doméstica uma pessoa que morava num bairro violento da Zona Sul. A mineira fez trecho do retorno para casa a pé, entre soluços e lágrimas que dificultavam o andar.
Após o pranto contido, decidiu que algo teria que ser feito não só por ela e por sua família, mas também por seus vizinhos. Estes tinham dificuldades de se empregar nas casas comerciais do centro da cidade por morarem no Franciscato. Alguns moradores emprestavam endereços de outros bairros, de conhecidos, para conseguir aprovar compras no crediário.
Quase dez anos depois, no dia 19 de dezembro de 1991, Rosalina se juntou a outras seis mulheres – Neuci, Lurdes, Cida, Dilva, Fátima e Neide – e fundou o então Clube de Mulheres Batalhadoras do Jardim Franciscato, que hoje é uma associação. Uma das primeiras iniciativas da entidade foi a implantação na comunidade do curso de alfabetização de adultos. Paralelamente as mulheres batalhadoras brigavam por direitos às condições básicas de higiene e saúde, transporte adequado, segurança e cursos de aprendizagem profissional.
Em 1997, o nome da mulher que foi discriminada por morar num bairro pobre e com alto índice de violência ultrapassava fronteiras. Ela foi convidada a participar de um congresso internacional em Miami, nos Estados Unidos, cujo tema foi o desenvolvimento de lideranças comunitárias. Naquela ocasião, Rosalina foi provocada pelos organizadores a apresentar um projeto de novas tecnologias para ser desenvolvidos em comunidades. Cerca de oitocentos projetos foram inscritos. A de dona Rosalina, da construção da Biblioteca Virtual, foi o vencedor. O prêmio, oferecido pela Fundação Kellog’s, foi de 50 mil dólares.
Desde então Rosalina Batista já participou de oito eventos internacionais, fora os congressos e as conferências da qual fez parte, como convidada de destaque, em Brasília, São Paulo, Santa Catarina, Minas Gerais e outros estados brasileiros.
Na área da saúde, Rosalina Batista é representante dos usuários no Conselho Municipal de Saúde de Londrina e do Conselho Estadual de Saúde do Paraná. A mineira também é conselheira da mulher de Londrina.
Dias antes, ela ocupara as galerias da Câmara Municipal de Londrina, numa sessão que debateu o pedido de aumento, pelas empresas concessionárias, da tarifa do transporte coletivo urbano. Rosalina se acomodou num canto discreto, mas foi percebida pela maioria dos 21 vereadores. Em silêncio, ela se manteve atenta aos acontecimentos, mas decidiu não se pronunciar sobre o problema. Calada, a mineira criou constrangimento nos políticos, que trataram a questão com mais seriedade.
A Associação das Mulheres Batalhadoras do Jardim Franciscato enfrenta problema de caixa, pois os cursos oferecidos pela entidade são gratuitos. O fornecimento de água na Biblioteca Virtual, onde as atividades são realizadas, pode ser cortado a qualquer hora, pois quatro faturas mensais deixaram de ser pagas. O telefone foi cortado e a internet deixou de funcionar. Ladrões arrombaram os prédios e levaram os computadores.
Mineira, Rosalina Batista não se rende. Continua, com a ajuda da comunidade, a ensinar as mulheres a bordar e tricotar um jeito novo de enxergar o mundo e de viver. Ela poderia se inspirar em exemplos negativos de outras entidades, que não vacilam em recorrer aos políticos para resolver problemas que nem sempre são coletivos. Mas diz que não mistura política social com política partidária.
Na foto, Rosalina Batista e a placa inaugural da Biblioteca Virtual
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